SOBRE SER LOUCO, SER INTERNADO E VOLTAR A SER GENTE

Este é um ensaio de Karla Cristina Fernandez Philipovsky Koerich, que gentilmente cedeu para publicação neste blog.Embora discorde de alguns pontos, é fantástico como pontos discordantes estimulam o pensamento e a curiosidade. Excelente leitura.

RESUMO
Neste pequeno ensaio, busco verificar, por intermédio de pesquisa bibliográfica, de que modo a psiquiatria, como um ramo especializado da higiene pública, se apropriou da loucura, transformando-a em uma doença com nuances de periculosidade que precisavam ser contidas; como se davam os processos de internação para o seu tratamento até pouco tempo atrás; como o saber médico era o protagonista dessa relação entre médico e paciente e, o que a Reforma Psiquiátrica no Brasil trouxe de mudanças para essa dinâmica tortuosa por que passavam as pessoas em sofrimento psíquico nos dias de hoje.
Palavras-chave: Loucura; Tratamento; Reforma Psiquiátrica.

ABSTRACT
In this short essay, I seek to verify, through bibliographical research, how psychiatry as a specialized field of public hygiene, appropriated the madness, transforming it into an illness with Hazard nuances that needed to be contained; how to give the hospitalization process for treatment until recently; how the medical knowledge was the main character of the relationship between doctor and patient, and what the psychiatric reform in Brazil brought changes to this tortuous dynamics by passing people in psychological distress.
Keywords: Madness; Treatment; Psychiatric Reform.


A questão das alas, alas de agitados, alas de dementes... basta ser colocado – qualquer um de nós – em uma ala de agitados que nos tornamos agitados, numa ala de dementes então eu não ouso dizer o que nos tornaríamos, pois é muito tentador, um gozo muito particular, até o fim dos tempos!
(OURY, 2010)


Como o louco virou doente e, a hospedaria, um hospital
Antes de a loucura ser considerada um transtorno mental, uma doença passível de tratamento, os loucos não tinham destino diferente de qualquer outra pessoa desviante: eram recolhidos por hospícios – hospitais gerais e Santas Casas – que, Segundo Amarante (1998), durante a época clássica, funcionavam como “hospedarias” para marginais. Qualquer pessoa que fosse tomada pela desrazão ou que representasse uma afronta à ordem social estaria sujeita a ser recolhida por essas instituições; prostitutas, leprosos, ladrões, vagabundos e loucos. Daí, depreendemos que os hospitais/hospícios não possuíam caráter de tratamento ou cura de doentes, apenas mantinham fora de circulação aqueles que não seguiam as normas.
Em Os Anormais, Foucault (2002) lembrou que a psiquiatria, em sua constituição, no final do século XVIII e início do século XIX, principalmente, não se configurava como um ramo específico da medicina geral, mas sim, como uma especialidade da higiene pública, institucionalizando-se como “domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que o fato da doença, ou de tudo o que se possa assimilar direta ou indiretamente à doença, pode acarretar à sociedade” (FOUCAULT, 2002, p. 148). Assim, ele nos mostrou que, enquanto a psiquiatria se institucionalizava como um ramo da higiene pública, ela precisou patologizar os distúrbios da loucura, tornando-a uma doença, fazendo prognósticos, analisando fichas clínicas, fazendo observações e, ao mesmo tempo, buscando demonstrar por meio dessas investigações que a loucura apresentava um grau de ameaça que só poderia ser administrado e combatido pela própria psiquiatria, que a estudava e era capaz de contê-la (por meio de tratamento e cura, em teoria), dada a sua linha higienista.
A partir do instante em que a loucura foi tornada uma doença que necessitava de tratamento,
[...] a psiquiatria fez funcionar toda uma parte da higiene pública como medicina e, [...] fez o saber, a prevenção e a eventual cura da doença mental funcionarem como precaução social, absolutamente necessária para se evitar um certo número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da loucura. (FOUCAULT, 2002, p. 149)


Com isso, temos o cenário adequado para a criação dos hospitais psiquiátricos como instituições exclusivas para o tratamento da loucura e do médico psiquiatra, como responsável pelos pacientes que estão tutelados a ele.

Louco não tem querer
O poder de intervenção na vida dos pacientes/doentes/internados – e gostaria de ratificar que essa autoridade garantia prerrogativas sobre essas vidas alheias que iam desde o diagnóstico até a alta ou não, da instituição – deu à psiquiatria e, consequentemente, ao médico psiquiatra a permissão para dispor e despojar seus pacientes de seus direitos mais básicos com o pretexto de os estarem tratando, fazendo mesmo experimentos no percurso da criação de seus saberes médicos, quando, conforme Foucault (2000, p. 340), “a relação constante e recíproca entre teoria e prática se vê desdobrada num confronto imediato entre médico e paciente. Sofrimento e saber se ajustarão um ao outro na unidade de uma experiência concreta.”
Nesse ponto, gostaria de saltar da Idade Clássica para o século XX, quando o poder médico se expandia em algumas direções secundárias, chegamos ao hospício, tão bem descrito por Goffman (1974) como um lugar em que qualquer pessoa que não fosse o internado, teria alguma espécie de poder sobre ele.
Entre os anos de 1955 e 1956, Goffman (1974) fez um trabalho de campo no Hospital St. Elizabeths, em Washington, nos Estados Unidos. Essa instituição federal contava com pouco mais de 700 internados e foi durante sua estada por esse meio que fez importantes observações a respeito das figuras que compunham a dinâmica desse tipo de entidade: de um lado, os internados e, de outro, todo o corpo dirigente (que abrangia desde os guardas, faxineiros, enfermeiros, médicos, até os diretores do lugar). Ele agrupou as instituições totais em cinco tipos primordialmente, sendo um deles o hospital psiquiátrico, considerado como local “para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional” (GOFFMANN, 1974).
Quando essa pessoa considerada incapaz, citada anteriormente, dava entrada na instituição, iniciava-se o processo por meio do qual ela era destituída de vários aspectos de sua vida cotidiana, para não dizer de quase todos. O primeiro e mais premente era a perda da liberdade, que acontecia em todas as suas instâncias. Não se tinha liberdade de ir e vir, já que se estava restrito a um único estabelecimento e mesmo dentro desse recinto “todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a sequência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários” (GOFFMAN, 1974, p. 18).
Sem liberdade de ação, de ir e vir ou de escolha, restava ao internado obedecer aos dirigentes e comportar-se bem, pois qualquer desvio da conduta considerada adequada era passível de castigos, para além de demonstrar, de acordo com os termos médicos, que o comportamento fora da norma apenas reforçava o diagnóstico de loucura e as suas nuances (agressividade, raiva etc.).

[...] a obediência tende a estar associada a uma atitude manifesta que não está sujeita ao mesmo grau de pressão para obediência. Embora essa resposta expressiva de autodefesa a exigências humilhantes ocorra nas instituições totais, a equipe diretora pode castigar diretamente os internados [...] e citar o mau humor e a insolência como bases para outros castigos. (GOFFMAN, 1974, p. 40)

Para além da falta de liberdade, os internados eram privados de direitos elementares como o de individualidade, escolha, privacidade ou de autonomia. Atividades de cunho secundário no mundo exterior como barbear-se, ir ao banheiro ou dar um telefonema tornavam-se obrigatórias de pedidos de permissão. Como crianças, os internados precisavam pedir autorização para executar essas e quaisquer outras ações, sendo que nem mesmo a humilhação em ter que pedir garantia que suas solicitações fossem atendidas de pronto; eles poderiam ser caçoados, terem seus pedidos negados, serem longamente inqueridos sobre a razão de quererem seus pedidos atendidos ou simplesmente poderiam ser ignorados e esquecidos pelos membros da equipe dirigente (GOFFMAN, 1974).

Como era aqui
Se o tratamento descrito por Goffman nos Estados Unidos, nos anos de 1950, já parecia extremamente desumano, causa ainda mais espanto que no Brasil, vinte anos depois, na década de 1970, haja relatos de casos ainda mais bárbaros, como os que ocorriam com os internados do Hospital Colônia Sant’Ana, localizado no município de São José, em Santa Catarina. Borges (2013, p. 1541), em artigo publicado, tem como fontes de entrevistas profissionais de saúde que trabalharam na instituição à época e que reportam como “Triste, doloroso, insuportável, feio, agonizante, terrível, escuro, tétrico, horrível, são palavras que cortam os diferentes depoimentos e que, para os entrevistados, descrevem o cotidiano da colônia na década de 1970.”
Borges (2013) escreve que, com o passar dos anos, o Hospital tornou-se um “depósito de gente”, um lugar negligenciado a despeito de como deveria desempenhar seu papel quando da sua inauguração, em 1941: “A existência do HCS é fruto de uma demanda ligada ao sofrimento, a fim de retirar do convívio social aqueles tidos como loucos, para amenizar seu sofrimento e proteger o meio social” (BORGES, 2013, p. 1532). Superlotado, como era a maior parte das instituições psiquiátricas do país em diversas épocas, o hospital já fora inaugurado com número de pacientes superior a sua capacidade sendo que, ao fim da década de 1960, o excesso de internados chegou ao seu ápice quando foi “colocado na lista de hospitais psiquiátricos que utilizam os chamados leitos-chão, camas improvisadas feitas no chão para internação de pacientes” (SERRANO, 1998 apud BORGES, 2013, p. 1533).
A autora ainda menciona que a instituição empregava procedimentos médicos que não atendiam às determinações de normas específicas e colocavam em risco a vida dos internados, como era o caso do eletrochoque:

Era também feito muito eletrochoque. Havia dois funcionários que eram os encarregados de fazer o choque. Era uma seção [sic] horrível. Colocavam o colchão no chão, e, aí, quatro pacientes seguravam um outro para que eles aplicassem o choque, e depois seriam os outros que segurariam que iriam sofrer a mesma prática. Isso era terrível. (PAULA, 2009 apud BORGES, 2013, p. 1541)


Se saíssemos da Colônia Sant’Ana, que fica em nosso estado, e fôssemos para Minas Gerais, em Barbacena, teríamos um quadro ainda mais degradante – por mais que possamos custar a crer que isso fosse possível –, tal era a condição da Colônia de Barbacena, hospital que se manteve em funcionamento até os anos de 1980, e que se tornou o caso mais emblemático da falta de estrutura e de humanidade dispensada aos seus pacientes no Brasil, ficando conhecida como o “Holocausto Brasileiro ”, e sendo exposta por Arbex (2013, p. 24) em livro de mesmo nome: “Sessenta mil pessoas perderam a vida na Colônia. As cinco décadas mais dramáticas do país fazem parte do período em que a loucura dos chamados normais dizimou, pelo menos, duas gerações de inocentes em 18.250 dias de horror.”
Em 1979, o cineasta Helvécio Ratton lançou o documentário Em nome da razão, em que denunciava a barbárie e negligência vividas na Colônia de Barbacena. Seu filme trouxe luz e mobilização quanto à questão daquela instituição em particular, mas também gerou debate acerca das instituições em sua totalidade no país. Franco Basaglia, psiquiatra italiano e pioneiro na luta pelo fim dos manicômios, assistiu ao documentário e manifestou ao seu diretor como a película tinha um poder de revelação, que de fato se mostrou verdadeiro. Basaglia também visitara a Colônia, e chocado com o que viu, foi mais um a denunciar e deixar em evidência o método – e por que não dizer a falta de –, nocivo e perverso com que os pacientes eram tratados (ARBEX, 2013).
Essa postura corroborava com o pensamento que se estabelecia no Brasil, no momento em que passava por um processo de redemocratização e que, associado a outros fatores, como a criação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que tinha reivindicações que iam para além da pauta corporativa – como direitos trabalhistas, aumento salarial, cursos de formação etc. –, reivindicava também mudanças no aspecto das “estruturas administrativas hierarquizadas e verticalizadas”, e criticava severamente as péssimas condições de trabalho devido ao número insuficiente de profissionais para atender aos pacientes, o que lhes causava sobrecarga e acarretava um atendimento sem qualidade; afora os terríveis problemas estruturais com os quais os internados conviviam, dentre tantas outras demandas. Esse conjunto de acontecimentos e ações propiciou que o movimento antimanicomial despontasse no Brasil (AMARANTE, 1998).
Enquanto a psiquiatria no país ainda vivia dias de barbárie e negligência mesmo em anos mais recentes (décadas de 1970/80), como já visto, podemos retroceder novamente no tempo e nos deslocar até a Europa do pós II Guerra, na década de 1950, e observar o movimento de reforma psiquiátrica que começava a ser articular e notar que o momento histórico/político, tanto lá quanto aqui, influenciou grandemente no despertar da sociedade para a melhoria da condição humana, como veremos adiante. Depois de fases de tanta violência, dor, mortes e sofrimento, não se podia mais admitir que as pessoas não tivessem tratamento adequado e digno.

Começando a transformação por onde começaram os problemas
Amarante (1998) lembra que depois da Segunda Guerra, a já intitulada comunidade terapêutica , tomada por suas experiências institucionais e por todo o horror causado pelos campos de concentração, buscou chamar a atenção do corpo social para a situação calamitosa em que se encontravam as pessoas que viviam nas instituições psiquiátricas daquela época e lembrou que o espírito democrático que tomava conta da Europa naquele instante não permitiria mais que tratamentos abusivos e desrespeitosos aos direitos humanos fossem aceitos.
Temos, então, campo fértil para as tão necessárias mudanças e reformas no âmbito dos hospitais psiquiátricos, uma vez que população europeia, havia pouquíssimo tempo, vira-se diante de uma guerra que deixara sequelas em seus soldados, em seu povo e, depois dela, era necessário que o continente se restabelecesse, mas, para isso, precisava contar com uma massa produtiva e saudável. Seus trabalhadores precisavam estar curados dos traumas do conflito vivido. E essa cura não poderia advir das instituições asilares da maneira que estavam, como nos advertiram Birman e Costa (1992), pois os hospitais, que já não tratavam ou curavam, estavam sendo apontados não só como responsáveis pela deterioração da saúde física de seus pacientes, mas também pela piora de seus quadros mentais e por tornar suas enfermidades crônicas.
Birman e Costa (1992) ressaltam que, a partir dessas constatações, até a obra de Hermann Simon – criador da Terapia Ocupacional , que estava abandonada em virtude de críticas sofridas por parte da psiquiatra europeia quase vinte anos antes – foi retomada pela comunidade terapêutica sendo, a princípio, colocada como a primeira manifestação de uma nova prática psiquiátrica, sendo também mencionada como o fundamento para a criação do que viria a ser o movimento francês de Psicoterapia Institucional.
Mais adiante, também é retomada a Psicoterapia Interpessoal , através dos postulados do psiquiatra Harry Stack Sullivan que, depois de constatar a melhora de seus pacientes por intermédio da integração médico/paciente, passou do tratamento individual para o de grupo, em que havia interação entre os próprios pacientes. Junte-se a isso o psiquiatra Karl Menninger, que desde antes da Segunda Guerra já usava em sua clínica o método de grupo com os internados, visando sua ressocialização (AMARANTE, 1998).O psiquiatra e psicanalista francês Jean Oury, em entrevista à revista brasileira Percurso, publicada no ano de 2010, ratificou a necessidade de mudanças na infraestrutura das instituições asilares no período do pós-guerra, sendo ele mesmo um dos responsáveis , desde o seu surgimento até os dias de hoje, pela clínica La Borde, localizada no interior da França, e que se tornou um reconhecido caso de sucesso na busca por tratamentos alternativos ao sofrimento psíquico, mudando paradigmas e transfigurando as intervenções de tratamento. Oury (2010) aplicou na La Borde seus conceitos de Coletivo e de Psicoterapia Institucional.
Com o primeiro termo, ele se referia a uma dupla articulação entre o Estabelecimento, que caracteriza como as relações com o Estado – incluindo contratos, hierarquia, necessidade de diplomas e estrutura –, e o tecido institucional que, segundo ele, “propicia essa raridade chamada vida cotidiana”. Para o psicanalista, era necessário “um operador coletivo para responsabilizar as pessoas, dar-lhes inciativas, promover a relação com suas famílias, não é um simples teatro, é simplesmente uma vida de todo dia, do dia a dia, a vida” (OURY, 2010). O psiquiatra diz que se um hospital não se preocupa em oferecer essa dupla articulação, oferecendo apenas o Estabelecimento, não se trata então de um hospital, com o intuito de tratar/curar, mas apenas uma clausura:

Se não existe mais uma vida cotidiana, chegamos às celas, à contenção e às câmeras. Em contrapartida, nos lugares onde houve um pouco de Psicoterapia Institucional não existem celas, contenções, câmeras e é possível ver que na vida cotidiana existe certa liberdade de circulação, ou seja, a condição para que possam existir encontros, ao acaso, do contrário não é verdadeiro [...]. (OURY, 2010)

Quando falava em Psicoterapia Institucional, Oury (2010) levantava a problemática da burocratização que havia tanto na hierarquia quanto na estrutura do Estabelecimento e o quanto isso inviabilizava o processo terapêutico, uma vez que essa psicoterapia tinha como objetivo não apenas tratar as pessoas que estavam internadas no asilo, mas tratar a instituição como um todo, incluindo médicos e todo o corpo clínico, além de todos os envolvidos diretamente com o funcionamento desse estabelecimento. Não era possível haver uma transformação na estrutura se essa estrutura não se abrisse e não oportunizasse a mudança requerida.
Tosquelles (s.d. apud OURY, 2009) diz que sem a abertura devida, temos o “enclausuramento hierárquico. Cada um fechado dentro do seu consultório e se acusando mutuamente de idiota, é uma situação que gera conflitos.”
As abordagens terapêuticas mencionadas aqui não representam integralmente o movimento que se iniciou na Europa e Estados Unidos na época do pós-guerra e mesmo antes e durante a II Guerra, mas, seguramente, foi mostrado o ponto central do que esse movimento propunha para as instituições asilares. Era premente a necessidade de implantar um método que considerasse o paciente como uma pessoa em sua totalidade – com direitos, necessidades, identidade, quereres –; que a responsabilidade exclusiva por sua melhora não estivesse apenas nas mãos dos médicos como seres oniscientes, nem por detrás dos muros dos hospitais, que isolavam e serviam como um espaço para sofrer e ser esquecido. Era preciso não uma reforma, era preciso demolir para construir de novo.

Como as mudanças aconteceram aqui: a Reforma
Ante a profusão de movimentos que versavam a temática da saúde mental e a emergência de sua reforma, em 1989 surgiu o projeto de Lei nº 3.657, do sociólogo e então deputado federal, Paulo Delgado (PT/MG), no qual ele propunha que os manicômios fossem progressivamente extintos, dando lugar a outros tipos de assistência; a proposta também desejava a regulamentação das internações psiquiátricas compulsórias. O projeto só foi sancionado em 6 de abril de 2001, tornando-se a Lei nº 10.216 e, apesar de todas as modificações sofridas – a parte do texto que visava à extinção dos manicômios, por exemplo, não foi inserida no projeto final –, considera-se que houve grande avanço na questão. (WADI, 2009)
Com essa lei, o Brasil passou a trabalhar com uma Política de Saúde Mental que buscará o tipo de tratamento que a comunidade terapêutica, muitos anos antes, já almejava. Conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, ela vai possibilitar que as pessoas portadoras de sofrimento psíquico não sejam mais impelidas exclusivamente a uma internação, que as isolaria do seu convívio social e familiar. Percebe-se e passa-se a trabalhar por um tratamento que se adeque ao máximo ao cotidiano desses pacientes, que passarão a se chamar usuários .
De forma bastante sucinta, a Lei 10.216 busca reduzir o número de leitos psiquiátricos de longa duração, dando preferência para que os atendimentos sejam realizados em hospitais gerais e que, no caso de a internação se fazer estritamente necessária, ela seja por período curto. Também propõe que seja criada uma rede de apoio assistencial que possibilite ao usuário ser atendido dentro de um perímetro máximo aceitável, para que ele não precise deixar seu espaço de convivência cotidiana – que é tão importante considerando a melhora de seu quadro –, para se tratar. Em relação aos pacientes ditos de longa permanência, buscar-se-á a sua desinstitucionalização e reabilitação social, introduzindo-o em um universo produtivo, que envolva trabalho, lazer e cultura. (BRASIL, 2015)
Quando esmiuçado o parágrafo único da Lei, vê-se todos os direitos básicos que foram solapados destes, agora usuários, durante séculos e séculos de duras intervenções psiquiátricas:

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Imprescindível notar a enorme importância dessa formalização de direitos, visto que até então, no simples decurso deste ensaio, se evidencia que nenhum deles era obedecido ou, sequer, levado em conta. Tínhamos a instituição asilar como uma cadeia que punia, não como um hospital que tratava; tínhamos um hospício que isolava, desrespeitava, humilhava, abusava e explorava seus pacientes. Tínhamos um estabelecimento que não considerava as pessoas internadas de acordo com suas limitações mas que, simplesmente, incapacitava a todas elas, não lhes dando qualquer explicação ou motivação para um tratamento em detrimento de outro; tínhamos, enfim, uma instituição que não buscava a ressocialização desses usuários.
Os nove itens desse parágrafo único protocolaram um novo recomeço para as pessoas portadoras de sofrimento psíquico:

Com este novo protagonismo, o do próprio louco, ou usuário, delineia-se, efetivamente, um novo momento no cenário da saúde mental brasileira. O louco/doente mental deixa de ser simples objeto da intervenção psiquiátrica, para tornar-se, de fato, agente de transformação da realidade, construtor de outras possibilidades até então imprevistas no teclado psiquiátrico [...]. (AMARANTE, 1998, p. 121)


O protagonismo mencionado por Amarante se deu na medida em que os pacientes saíram de dentro do estabelecimento psiquiátrico, quando tiveram a chance de serem desinstitucionalizados, o que incluía não estar mais sob a égide médica; não que não fossem mais tratados por médicos, pois continuariam a ser, mas porque seu tratamento não emergia mais apenas dos saberes médicos.
O ato de, paulatinamente, “sair da instituição” só foi possível por intermédio dos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) ou NAPs (Núcleos de Atenção Psicossocial), centros de atenção social que começaram a surgir no Brasil ainda em 1986 , graças aos movimentos sociais e da categoria dos trabalhadores de saúde mental, de quem já tratamos anteriormente, que lutavam pela melhoria das condições de assistência e entregavam as condições péssimas em que se encontravam as instituições psiquiátricas que eram, até então, a única expressão de tratamento disponível para as pessoas que precisavam desse tipo de auxílio. (BRASIL, 2004)
Os CAPs se estabelecem como estruturas territoriais e descentralizadoras de tratamento; integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), caracterizam-se como serviços de saúde abertos e comunitários. O manual intitulado Saúde Mental no SUS: os centros de atenção psicossocial (2004, p. 13) afirma que os CAPs são lugares

de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivos de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida.

E que têm como objetivo

oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos.



Na teoria, o CAPs é um espaço de tratamento e acolhimento que respeita o ambiente em que o usuário vive e que não o retira de seu meio, nem o despe de suas particularidades como ser humano com a justificativa de tratá-lo. No CAPs, as portas estão abertas para quem quiser ir e vir e o saber médico passa a ser um saber terapêutico, que não se restringe unicamente à psiquiatria, mas que tem nela apenas uma de suas vertentes, posto que cada um desses estabelecimentos conta com uma equipe técnica mínima de um médico com formação em saúde mental, um enfermeiro, três profissionais de nível superior dentre as categorias: psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional ou pedagogo; e quatro profissionais de nível médio: técnico e/ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão (BRASIL, 2004).
Além disso, os CAPs oferecem oficinas, psicoterapia em grupo, atendimento aos familiares dos usuários, visitas domiciliares e reinserção social/familiar. Olhando as leis, os projetos instituídos e a parte do “papel”, parece mesmo que as amarras da camisa-de-força manicomial foram desfeitas e que todas as dificuldades foram ultrapassadas mas, infelizmente, a realidade brasileira ainda deve manejar e tentar solucionar questões como a da falta de estrutura, que persiste. Sai o hospício, entra o CAPs, e a demanda dos usuários continua sendo bem maior do que a oferta de espaços terapêuticos e, mesmo que o manual aponte uma equipe mínima para garantir o funcionamento desses lugares, a falta de recursos humanos e de qualificação adequada para atender a essa clientela ainda é escassa.
Ainda deve ser lembrada a questão da medicalização que, se durante séculos foi usada como uma maneira de controlar os ânimos da população internada, segue até agora, ao menos para a população que tem acesso a esses medicamentos de forma gratuita, com princípios ativos ultrapassados que apenas embotam esses usuários, não permitindo que tenham progressos mais expressivos no percurso de seus tratamentos.

Algumas considerações

Este pequeníssimo ensaio não tem qualquer pretensão de encerrar as temáticas loucura-tratamento-reforma ou de abarcá-los em sua totalidade, pois seriam necessários muitos anos de estudo, leitura e pesquisa. Meu intuito foi o de mostrar o desenrolar histórico – mesmo que muito resumido – da triste ascensão da loucura e de como ela foi apropriada pelo saber médico e pela instituição psiquiátrica durante tanto tempo.
O epílogo mais lastimável ao qual poderia chegar é o de perceber que os hospitais, os asilos, os manicômios, as colônias eram lotados não porque havia um número indecente de pessoas loucas na sociedade mas, sim, porque durante muito tempo os critérios de diagnóstico eram pífios e segregadores e longe de buscarem a melhora do “doente”, procuravam apenas deixá-lo mais e mais em estado de estupor, menos dono de si, menos senhor de suas vontades, menos independente, menos gente.
Criou-se a loucura como doença, criou-se o hospital psiquiátrico para tratar exclusivamente a loucura e, então, colocou-se lá dentro todas as pessoas que possuíssem a patologia. A questão é que os braços da loucura se alongaram tanto que envolveram qualquer comportamento que não estivesse dentro dos padrões da normalidade deste ou daquele contexto histórico. Extinguem-se doenças, criam-se novas patologias e quem não enquadra no sistema, enquadra-se na doença; seguimos, então, a mesma dinâmica instaurada desde as origens do hospital psiquiátrico.
A despeito disso, sim, hoje, o horizonte parece bem mais promissor do que pareceu em séculos. A humanização do tratamento, a desinstitucionalização dos usuários, o tratamento medicamentoso adequado, o apoio da família, as psicoterapias, a quebra gradual de estigmas, o fato de a loucura estar em voga e toda a sorte de transtornos que podem ser associados a ela (pânico, depressão, ansiedade, neurose...) fazem dela um assunto de trato mais digerível, diferentemente de outros tempos.
Depois de tantas amarras, parece que o “louco manso”, aquele que nos habita a todos, tem finalmente a liberdade de pular o muro alto e, numa profusão de oportunidades, tem a liberdade de ser.

REFERÊNCIAS

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ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 1. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
BIRMAN, Joel; COSTA, Jurandir Freire. Organização de instituições para uma psiquiatria comunitária. In: AMARANTE, Paulo (Org.) Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica, Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1994. p.41-72.
BORGES, Viviane Trindade. Um “depósito de gente”: as marcas do sofrimento e as transformações no antigo Hospital Colônia Sant’Ana e na assistência psiquiátrica em Santa Catarina, 1970-1996. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p.00-00, out./dez. 2013.
BRASIL. Centro Cultural da Saúde. A reforma psiquiátrica brasileira e a política de saúde mental. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2015.
BRASIL. Lei 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2015.
BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção À Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
BRUM, Eliane. (Prefácio) Os loucos somos nós. In: ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro, p. 16, 1. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
DE CARLO, Marysia M. R. do Prado; BARTALOTTI, Celina Camargo. Caminhos da Terapia Ocupacional. In: DE CARLO, Marysia M. R. do Prado; BARTALOTTI, Celina Camargo (Org.) Terapia ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas, São Paulo: Ed. Plexus, 2001. p.19-40.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Editoria Perspectiva, 2000.
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REIS, José Roberto Franco. O coração do Brasil bate nas ruas: a luta pela redemocratização do Brasil. In: PONTE, Carlos Fidelis; FALLEIROS, Ialê (Org.). Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. 1. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ-COC-EPSJV, 2010. p. 221-236.
WADI, Yonissa Marmitt. Uma história da loucura no tempo presente: os caminhos da assistência e da reforma psiquiátrica no Estado do Paraná. Revista Tempo e Argumento, vol. 1, n. 1, p.68-98, jan./jun. 2009.

BIO
Karla é formada em Letras, pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL, e escreveu este artigo para a conclusão da disciplina "Memória, História e Instituições de Isolamento", do mestrado em História do Tempo Presente, da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, que cursou como aluna especial. Tem 32 anos, é florianopolitana, formada em letras, casada, tem uma filha, é de esquerda, ateia e, ainda assim, leonina. Gosta de assuntos ligados à morte e à dita "loucura", mas é uma boa pessoa.

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