TRATAMENTOS DEPENDÊNCIAS – PARTE II


Comecei essa série de posts definindo dependências e seus tratamentos, como terra de ninguém, devido à imensidão de formas e tipos de tratamentos, que vão do basicamente médico, com medicação e ponto, até os moralistas-religiosos, onde o “vício” é falta de conhecimento da luz do Senhor, e basta se converter e serás curado.

Caso estejam interessados, fiz um Power Point  História do Tratamento das dependências.

No ultimo post, falei de um tipo de tratamento, que são as Comunidades Terapêuticas, das quais o melhor exemplo é a Comunidade de San Patrignano, na Itália.

Hoje, vou discutir algumas ideias, tanto de tratamentos quanto do que é chamado de “REDUÇÃO DE DANO”, e que é, basicamente, prevenção terciária.

Comecemos então com este último, e vamos de volta ao final dos anos 80 na Suíça, onde em Zurich, um parque chamado Platzspitz foi colocado à disposição dos usuários de heroína.

Lá, eles podiam usar à vontade, trocando as agulhas usadas por agulhas limpas, numa tentativa de diminuir a incidência de mortes por transmissão de doenças infecto contagiosas. O parque ganhou o apelido de “Parque da Agulha”.

Os comentários mundo afora variaram desde o “ó como os suíços são evoluídos”, até o criticismo sem lógica dos donos da moralidade do mundo.

Lembro-me de, como médica formada há pouco e como neta de avó suíça, provavelmente muito mais pelo segundo motivo, que meu pensamento foi: “Danados dos suíços que acharam um jeito de fazer Eugenia e ainda serem aplaudidos”.

Problema foi que as casas e apartamentos em volta do parque, que por sinal era belíssimo, começaram a cair de valor no mercado imobiliário, pois afinal não é nada legal abrir sua janela numa manhã ensolarada e dar de cara com defuntos no parque.

Assim que, suíços sendo suíços, em 4 de fevereiro de 1992, o parque foi “limpo” de todos os adictos.

Seguiu-se um problema socioeconômico: aumento enorme do roubo de carros, o que também não podia ser aceito naquela regrada sociedade. Já imaginaram que vergonha se um chefe de cartel colombiano vai depositar seu dinheirinho no Banco e, no meio tempo, seu Mercedes é eviscerado? Não, não podia funcionar.

Daí, inventaram um dos mais brilhantes sistemas que conheço: Redução de Danos.

Por definição, redução de danos refere-se a uma série de políticas públicas de saúde, destinadas a reduzir as consequências negativas de certos comportamentos humanos, mesmo que esses comportamentos sejam arriscados ou ilegais.

Naturalmente, os mais preocupados com moralidade do que com saúde criticam essas iniciativas, por acharem que tolerar comportamento de risco ou ilegal envia mensagem para a comunidade de que estes comportamentos são aceitáveis. Como se, desde que o mundo é mundo, nós humanos tivéssemos precisado de apoio para nos comportarmos estupidamente.

Mas, voltando ao sistema suíço, é o seguinte:

a)Para dependentes, a heroína é fornecida sob receita médica,e os locais de injeção são supervisionados.
b)Sistema de trocas de agulha (incluindo os intercâmbios nas prisões)
c)Divulgação e serviços de metadona, alojamentos para dependentes e hospitais/dia para usuários.
d)Projetos para aumentar a integração dos usuários de drogas no local de trabalho, postos médicos para usuários de drogas e moradores de rua,e projetos que prestam assistência aos trabalhadores(as)do sexo.
e)Autoajuda entre os usuários de drogas injetáveis.

A redução de danos é identificada como um dos quatro pilares da política de drogas federal suíça.

Pesquisas e estudos de monitoramento mostram que a Suíça fez progressos consideráveis na redução do uso de drogas e problemas relacionados.
Essa abordagem também contribuiu para os debates sobre outras políticas nacionais e internacionais de drogas.


Um salto geográfico, e vamos aos USA e Stanton Peele, considerado um dos 10 mais na área de dependências no mundo. Infelizmente só comecei a tomar conhecimento de seu trabalho já em meados dos anos 90, embora esse psicólogo e advogado tenha iniciado seu trabalho nos anos 70, mas, antes tarde do que nunca, vamos aos pilares de suas teorias:

1 - Dependência não é causada por substâncias.

Lembremos que quando ele começou a trabalhar no campo, no início dos anos 70, heroína era a única substância considerada como causadora de dependência, e que agora o DSM está considerando colocar a dependência a jogos de azar, sexo e comida, como doença também.

Assim ele acredita, e eu concordo, que dependência é a respeito da intensidade da experiência e do envolvimento em certas atividades, e não a atividade em si, seja ela consumir drogas, ou álcool, ou pornografia online, ou jogos em Vegas.

2 - A verdade é que, a maioria das pessoas se recupera naturalmente de um vício.

Essa ideia ele desenvolveu a partir do documento “Alcoolismo não é mais o que costumava ser”, publicado pelo Instituto Nacional do Álcool e seu Abuso (NIAAA), baseado numa enorme pesquisa do Estudo Epidemiológico Nacional sobre o Álcool e Condições Relacionadas (NESARC), cujas conclusões foram:

a) Vinte anos após o início da dependência do álcool, cerca de 3/4 dos indivíduos estão em plena recuperação.
b) Apenas 13% das pessoas com dependência de álcool receberam tratamento especializado.
c) Ao contrário da opinião largamente comercializada do alcoolismo como uma doença insidiosa que inexoravelmente leva a pessoa a um desenlace terrível, cerca de 75% de todos os alcoólicos superaram sua "doença" sem qualquer tratamento formal em um hospital, ou centro de reabilitação, ou prática de doze passos.

3 - A redução de danos é a mais importante inovação do século 21 na política de dependência e tratamento.

A abordagem de abstinência total é irremediavelmente irrealista, pois impõe uma ideia de “tudo ou nada”. Promovendo apenas a abstinência, destroçamos as possibilidades de mudança e distribuímos mal esforços e recursos.

É muito mais sensato ajudar as pessoas (especialmente os jovens) a desenvolverem habilidades na vida diária para alcançarem objetivos específicos a curto prazo, do que se concentrarem em nunca mais beber ou usar drogas novamente. Também é mais barato e eficiente, pois tratamentos residenciais são simplesmente demasiado caros para funcionar como uma medida de saúde pública.

Esta parte, discordo totalmente, digo a parte do serem caros. San Patrignano é completamente gratuito, sustentando-se por doações e pela venda do que produzem. Em São Paulo, nos anos 90, com meu Projeto Phoenix, demonstrei que pode haver excelente tratamento a preço INPS (era como se chamava na época). Por isso, ganhei menção honrosa da Câmara Municipal da Cidade. Pode haver sim, excelente tratamento de baixíssimo custo.

4 - Tratamento é muito mais do que simplesmente prover suporte para o dependente parar de usar, seja lá o que for que estiver usando.

Por muitos anos, o tratamento psicológico padrão, particularmente a terapia cognitivo comportamental (TCC), foi muito negligenciada pelos profissionais da área.

Na verdade, muitos psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais treinados se esquivaram do tratamento de alcoólatras e outros dependentes, por se sentirem “intimidados” pelos rótulos e pelas afirmações “científicas” de que os dependentes respondem de maneira diferente aos problemas e dilemas humanos do que outros indivíduos.

Mas, quando avaliadas empiricamente, abordagens TCC padrão têm se revelado altamente eficazes no tratamento das dependências.

Depois de examinar as taxas de sucesso de um grande número de terapias concorrentes, um estudo recente publicado no Jornal de Tratamento de Abuso de Substâncias identificou as cinco terapias mais eficazes no tratamento das dependências: Terapia Comportamental Cognitiva (TCC), Abordagem Comunitária de Reforço (ACR), Entrevista Motivacional (EM), Prevenção de Recaídas e Treinamento de Habilidades Sociais.

Em contraste, o AA, a educação sobre drogas e a reabilitação baseadas nos doze passos foram extremamente ineficazes.

No entanto, estas terapias são amplamente disponíveis, em grande parte porque, oito décadas depois de sua criação, o AA tem sido resistente aos avanços médicos e psicológicos que ocorreram neste ínterim.

Pode ser que seja possível fundir estas técnicas com o tratamento de doze passos tradicionais, como alguns afirmam, mas as duas abordagens são basicamente incompatíveis.

O modelo comportamental de tratamento permite que os pacientes determinem sua própria visão de sucesso - seja a abstinência ou a moderação.

Mas nenhum programa de 12 passos permite este tipo de autodeterminação. Na verdade, as pessoas que consideram qualquer coisa, fora a abstinência total, são atacadas como se estivessem em negação ou exibindo "pensamento fedorento." (traduzi "stinking thinking"ao pé da letra, como "pensamento fedorento". Procurei no site brasileiro dos AA por outra tradução, mas não encontrei. Se alguém souber, por favor informe)

Este tipo de decisões duras com clientes, suas motivações e os seus sentimentos, é claro, não é recomendado em psicologia.

5- Capacitação versus Impotência.

Autoeficácia é um componente crítico da TCC, que se esforça para convencer as pessoas que elas têm a capacidade e competência para gerir suas próprias vidas.

Todo o sucesso é atribuído aos próprios pacientes, refletindo sobre sua autoimagem, o que os ajuda a aprender a melhorar suas habilidades de autogestão e reconstruir sua confiança.

O conflito entre o modelo de 12 passos de impotência - "Rendemos nossas vontades e nossas vidas para o nosso Poder Superior" - e a estratégia de tratamento emergente de autocapacitação não é inteiramente insolúvel. Por exemplo, os componentes de solidariedade e de partilha do AA podem apoiar a meta de autoeficácia.

Em outras palavras, se a construção de capacitação através de terapias baseadas em evidências é o método mais eficiente e realista para evitar abuso de substâncias, bem como para o tratamento de pessoas que já estão viciados ou dependentes, por que devemos nos apegar ao modelo de abstinência 12 passos e sua mensagem de rendição?

Sim, é verdade que muitas pessoas foram ajudadas pela abordagem dos AA, mas uma parte muito maior nunca foi.

Há um reconhecimento crescente, especialmente entre os mais jovens, que, para a maioria das pessoas, AA simplesmente não funciona.

Assim, quando o NIAAA declara que "O alcoolismo não é o que costumava ser", o que está realmente dizendo, diplomaticamente, é que estamos enchendo as mentes de muitos viciados e alcoólatras com noções que tornam muito mais difícil para eles se recuperarem.

De fato, pensamento fedido. O que nos leva de volta para a grande transformação que está ocorrendo na definição médica de vício ou dependência.

É difícil para qualquer grupo de pessoas reconhecer a medida de como eles pensam sobre si mesmos, as substâncias que utilizam, e seus outros envolvimentos, para não mencionar a natureza do vício em si, a gravidade de seu vício e suas chances de recuperação.

Chegar a um acordo com esta verdade escorregadia marcará uma revolução ainda maior, em teoria, nas dependências e seus tratamentos, no século 21.

Concluo dizendo que, tendo trabalhado na área das dependências por cerca de 25 anos, em diferentes países, minhas visões sobre o assunto mudaram com o tempo, com o aprendizado e com a experiência.

Ainda bem, digo eu. O lado escuro da situação é que a maioria continua a defender um ponto de vista, uma instituição ou uma ideia, ao invés de defender o bem estar e as possibilidades dos pacientes.

Tenho fé que chegará o dia em que a melhora dos indivíduos seja muito mais importante que nossas crenças sobre o assunto.

Aguarde os próximos post sobre crenças, comportamento e consequências.

Bom fim de semana.

Comentários

  1. Muito boas as informações e excelente reflexão sobre a atenção maior ao bem estar dos pacientes. Como em diversas, quiça todas, outras áreas de atuação do homem, o século 21 nos convida a fazer diferente aquilo que comprovadamente não surtiu efeito no mundo dos séculos passados, trazendo-nos a dor e o sofrimento. Sem a dimensão da transcendência do ser humano, e da sua atual conectividade energética e internética, poderemos dar nos mesmos precipícios dantes chegados, com consequências mais desastrosas.
    Que suas ideias e dicas ajudem nessa revolução silenciosa e profunda que precisamos viver, individual e coletivamente.

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